Sopra o vento, gélido, sorrateiro, maroto. Nos passos trôpegos pelas calçadas, abraço o tempo. Abraço as lembranças. Abraço a saudade. Abraço a cidade vazia.
São breves passos entre meu refúgio criativo e a Estação Rodoviária. Um quilômetro, talvez, Talvez menos até. Fecho a janela emperrada do prédio quase centenário onde fica meu atelier. Antes de sair, despeço-me das ferramentas com um brinde à noite, um brinde ao gelo que me espera pelo caminho. Bebo uma xícara de chá bem quente e saboreio alguns biscoitos amanteigados. Depois, fechando a porta antiga, despeço-me do gato que me olha com desdém, sem levantar de onde está. Apenas balança com ar de deboche a ponta do rabo num aceno próprio de gato, porque todo gato é manhoso, traiçoeiro, manhoso e debochado.
Ouço o som dos meus passos como notas compassadas de uma canção que cantarolo em silêncio, para que a música em minha mente faça-me companhia, no breve caminho dos meus passos, entre a porta que fecho e o ônibus que me leva até à casa.
Pelo caminho, pisoteio nas folhas de Acer e Álamo caídas, alcatifando o chão das ruas perfumadas pelos sons alegres que se evadem das cantinas e restaurantes apinhados de comensais. É inverno em Gramado.Ontem ainda era outono. Pouco antes, um verão discreto, e logo amanhã, será nova primavera.
Uma gentil senhorita vê-me entrar no ônibus, quase lotado,e insiste que eu deva ocupar seu lugar. Sorrio e agradeço, dizendo que meu destino está a dez minutos apenas. Não tem negociação. Ela insiste. Outros insistem também, e aquiescendo, assento-me, confortavelmente, embora tivesse preferido permanecer de pé, ainda lembrando do gato ordinário que guardava a porta de meu atelier. Os pensamentos mal começaram e meu sistema automático me avisa que estamos chegando ao destino. Ergo-me e me despeço dos jovens à minha volta. Sinto-me um ancião perto deles. Inocentes. Mal sabem eles que dentro da casca de velho, ainda nem fiz minha Bar Mitzva. Não completei treze anos. Não terminei meus sonhos de guri.
O frio tornou-se mais intenso, mas sou recompensado pelo entardecer. Pela poesia da noite, de um lado do horizonte, e do céu em chamas, a oeste de minhas lembranças.
Creio que a vida é também assim. O ocaso é um entardecer silencioso e uma promessa de novo amanhecer perfumado. E do lado oposto, a escuridão das lembranças, daquela parte triste, onde contabilizamos o tempo pelos anos que se foram e não pelos tantos entardeceres que nos abraçaram.
Fotos enviadas por um colaborador anônimo, com devidos Direitos Autorizados. Em troca, tenho compromisso de esvaziar a alma numa prosa com sentimentos.
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